quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O Carnaval não deveria ser "tempo de mortes", em sentido literal: uma leitura meio plural

Israel Fonseca Araújo (editor; e-mail: poemeiro@hotmail.com)
Academia Igarapemiriense de Letras (AIL)



(IMG: Pexels)


Em qual dos períodos do ano, mesmo em uma "sólida" democracia, seria possível aos cidadãos das classes ditas baixas (aos sujeitos do povo) fazerem críticas bem contundentes e diretas aos "poderosos" governantes (políticos, ditadores, reis, mandatários diversos)? Se você pensou no Carnaval (G-A), fique mais um pouco aqui e vamos conversar; se não lembrou dessa poderosa festa popular (G-B), venha aqui e vamos dialogar: não custa nada. Se não gosta do assunto (G-C), vamos tentar levantar umas indagações - pois assim podemos desobstruir o "meio de campo".

Odiada por muitos que, por convicções moralizantes, nem sempre tão bem explicadas, se referem a esse período como tempo "de perversão" e outras adjetivações, o Carnaval também tem uma enorme adesão da mídia que se organiza em conglomerados (caso dos grupos Globo, Bandeirantes e outros). Se, de um lado, ainda há muitos enunciados que circulam nos meios virtuais e no face a face se reportando ao Carnaval como sinônimo de libertinagem, de período de liberação para o sexo sem responsabilidades, tempo de se contrair vírus HIV e outras doenças transmitidas via atividade sexual (amiúde, circulam memes do tipo: durante o Carnaval: um homem correndo atrás de uma mulher não-grávida (insinuação de querer...); depois: uma mulher, gestante, correndo atrás de um homem; depois do Carnaval: a temporada dos chás-de-bebê etc.), por outro lado, o período pré-carnavalesco é mostrado, nas mídias, como sendo de boa movimentação na economia, sobretudo em centros como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Recife, Salvador e outros desse porte (mas, também, em cidades menores, guardadas as proporções, claro); a economia popular e o turismo nesses centros urbanos ganham muito com os festejos carnavalescos; rede hoteleira, então, nem se fala. 

Nesse por outro lado, também cabem referências ao poder de extravasar as dores, tratar das mazelas sociais e políticas, dos insucessos econômicos e outras agruras da população. É possível não somente relaxar e gozar a vida, mas, igualmente, exercitar o poder de crítica às autoridades (semelhanças com a tradicional malhação de Judas, bem lembrado!!): os bonecos bem se prestam a esses expedientes; as máscaras, ah, estas, sem, estas, sim. Usando máscaras e demais expedientes de fantasias, alegorias, é possível denunciar a crueldade dos soberanos e dos tiranos, é possível denunciar os regimes totalitários (enfrentar o nazismo e o fascismo não é fácil, nunca o foi), é possível ridicularizar presidentes (a "burrice" atribuída a Dilma Rousseff, excelente demonstração de misoginia, tbm; a ironia a um Lula da Silva "cachaceiro" e "ladrão"; um Temer "vampiro" e as imagens de um Jair Bolsonaro de armas nas mãos e "inimigo" da natureza, da pesquisa, da ciência e da educação). Isso, para demonstrar de modo muito rápido.

Em todo caso, o poder da máscara é incalculável e, nestes tempos ditos tão sombrios e de ameaças às garantias individuais e coletivas (senador levando tiros de pistolas de uso de policiais militares, p.ex.; presidente e deputados fazendo insinuações de cunho sexual, agressivo e profundamente machista a uma jornalista brasileira de renome internacional etc., etc.), talvez um dos poucos recursos que a população poderia lançar mão para poder tensionar com as autoridades e medir forças com o aparato estatal (sempre muito violento e poderoso) seja, de fato, a máscara e outras alegorias. Caso você integre o G-C, citado acima, uma boa sugestão é ler M. Bakhtin, em seus trabalhos de pesquisa sobre a obra de François Rabelais sobre a cultura popular na Idade Media e no Renascimento (tem o livro A Cultura Popular na Idade Media e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, editora Edunb/HUCITEC, apenas a título de exemplo); de fato, o autor faz uma análise cuidadosa acerca desse período histórico, das questões culturais - que são políticas, também. Ali, vemos que o riso rebaixa, que ele fala de morte, mas também de vida e que o tensionamento da população em relação aos governantes, às autoridades e aos regimes autoritários é uma estratégia de poder sempre possível (onde há este, sempre há resistência, já sabemos a partir de Foucault e de sua formulação quanto a uma microfísica de poder).

Caso você pertença a G-A, pode estar pensando nas dezenas de mortes e nas centenas de acidentes automobilísticos que sempre são registrados no período de Carnaval de cada ano (fora os que não são...). Sabemos, via imprensa - com base em dados de estatísticas oficiais do poder executivo federal, que em 2019 teve diminuição em relação a 2018 (Mortes em estradas federais no carnaval de 2019 caem 19%, diz PRF”; 83 pessoas perderam a vida no feriado, contra 103 no mesmo período do ano passado. Número de acidentes também caiu, de 1.518 para 1.157 - segundo o site G1, publicado em 07/03/2019, acessado nesta data), e sabemos mais e mais. Mas, as mortes no trânsito acontecem, todos(as) também sabemos, por conta do ato irresponsável dos motoristas brasileiros, por inúmeras demonstrações destes (o que inclui até, quem sabe, Presidente de país, rsrsrs): as muitas ocorrências de acidentes e de mortes se dão em períodos como o Natal e a Semana Santa (parece até ironia, mas nesses momentos, tbm).

Quando presidente do país determina a retira de atividades de fiscalização no trânsito em estrada federais, retirada de radares e coisas do gênero, também os dados mostram o crescimento de acidentes e de mortes nas pistas federais. Olhar o Carnaval apenas como signo de "perversão" e como tempo de liberação extremada(??!!) de bebidas alcoólicas e da prática sexual dita irresponsável é, podemos sugerir, uma forma muito limitada de abordar a questão, mesmo porque a nós parece que a visada moralizante revestida de "bons costumes" não costuma ser uma boa ferramenta para compreender os fatos sociais e políticos, culturais.

Talvez essa visada apenas seja importante em um projeto de alienação e de emburrecimento da população, ou de determinados extratos desta; se  é que isso é possível.


#PoemeirodoMiri


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