Franciorlys ViannZa (Professor e Escritor)
Já li em entrevistas de estilistas
conceituados que a roupa não é uma mera peça para cobrir nudezas, é questão de
identidade, de mensagem, de força e civilidade. A título de exemplificação: se
você almeja ser o centro das atenções, opte por um vestuário colorido, com
cortes arrojados, alíneos, até futuristas; se você almeja passar despercebido,
use cores foscas, um preto básico, um prêt-à-porter; alta-costura para
quê, né?! Na dúvida, faça como eu: prefira tecidos de linho; dão um ar
elegante, mas não têm frescura: jogou sobre o corpo, está pronto para o high
society. Nem exigem ferro de passar, o aspecto amarrotado casa
perfeitamente com o linho. ‘Que diacho deu em você, escritor? Andou assistindo
muito ao Diabo Veste Prada?’. Não, leitor. Destrincharei o título desta crônica
já, já. Fiz este desfile na passarela com fins de ilustrar a seguinte
discussão: a roupa que você está usando no ensejo desta leitura diz sobre a sua
forma de apresentação mais do que você imagina. A apresentação da literatura
resguarda algumas semelhanças.
Muito se discute nos meios acadêmicos
acerca do movimento literário (ou estética, ou escola) do Boom Latino
Americano, ocorrido entre as décadas de 60 e 70, e que modificou a ótica do
mundo a respeito da literatura produzida nestes rincões da América. Até o
Boom ser deflagrado, o resto do planeta – e por resto, entenda-se o Velho
Mundo – dava pouca atenção aos nossos escritores. Quiçá, carecêssemos de uma
proposta ficcional que representasse nossa identidade de povo explorado,
subdesenvolvido, espezinhado por políticos corruptos, terra frutífera para
messias e outras facetas ditatoriais. Um território que remete à Macondo – o
famoso vilarejo dos Buendía; a transfiguração do continente americano em
alegoria, pelo olhar de Gabriel García Márquez. Segundo doutos intérpretes,
Macondo é uma analogia da solidão da América, isolada, envolta em misticismo,
propensa ao arroubo de historietas contadas por espertalhões.
Tudo o que mencionei é muito bonito,
poético e romântico, concorda? Larguemos mãos desse olhar unilateral, para
compreendermos: o Boom obteve um elevado sucesso editorial com o aporte
das editoras europeias, que, após o estrondoso êxito comercial de Cem anos
de Solidão, reforçaram o caça-níquel em nosso rumo. Opa! Literatura na
América latina vende bem – vende, assim como nosso pau-brasil e nosso minério.
Égua desse povo, sugam tudo de nós, da mão de obra barata ao guano! A meu ver,
e de Júlio Cortázar, o imperialismo foi tão cruel com nossa gente e literatura
que até o maior despertar literário da América recebeu cognome em língua
inglesa. Acaso? Não. É uma marca da presença dessas editoras. Podemos
questionar o lado positivo delas, mas aí, leitor, teríamos que questionar o
lado positivo das facas, pentes e espelhos oferecidos aos povos originários; o
que foi introduzido na cultura nativa compensou o extermínio posterior? Depois
que as editoras esvaziaram as jazidas do Boom, seus editores regressaram
às caravelas e ganharam o alto mar, para bem longe da nossa literatura.
Atualmente, para um latino-americano publicar em solo europeu precisa vender o
pai, a mãe e um rim.
A forma como o mercado editorial europeu
“apresentou” o Boom Latino Americano foi decisiva para o alcance mundial
do Realismo Maravilhoso. Vamos fazer o seguinte, troquemos o verbo apresentar
pelo substantivo roupa. A roupa internacional que as editoras europeias
entrajaram na literatura latina abriu espaços para divulgarmos história,
cultura, denúncias e reivindicações sociais. A partir do Boom, a
produção intelectual deste cadinho do Novo Mundo foi exibida – e negociada –
com ares doutos. Entramos no radar eurocêntrico, mesmo que por uma efeméride.
Depois de se fartar do banquete do empregador, o serviçal pegou os pratos e
talheres e foi para a pia; alguns, agradecidos pela vianda, obsequiada por um
facho de interesse. É isto que fomos depois do Boom, e somos, para eles,
os donos do poder: escritores de pia. A mesa de jantar continua reservada aos
convidados, a rigor, de pele branca e burgueses.
A literatura é uma ninfa que, loungue
durée, muda seu closet, para acompanhar o espírito do tempo. E tem
resistido, com estratégias, trocas e adaptações. Quem decretou a morte do
romance, morreu primeiro. O romance migrou para uma estrutura com parvas menores,
concisas, com leitura mais ágil, abraçou a versão ebook, dialoga com outras
tecnologias, virou, em casos, áudio-romance. Conheço uns acadêmicos que torcem
o nariz para os formatos atuais de apresentação da literatura – a saber, por
canais como Facebook, Wattpad, blogs, sites, Instagram. Para eles, só é
escritor o sujeito que tem ISBN. O próprio sistema de catalogação das
universidades tem dificuldade para registro de obras artesanais, como o livreto
de Cordel. A Câmara Brasileira do Livro é deus na terra. Por sorte, a
literatura sempre se mantém uma Rainha má, transgressora, avulsa aos quadrantes
dos quadrados. Encontra seus caminhos diante de bloqueios na estrada, seja por
conservadores literários, seja por tanques e soldados. O caso do Boom é
emblemático: uma literatura amalgâmica entre insólito e real, para falar sobre
a opressão de ditaduras militares, em tempos de caça às bruxas, por governos
ilegítimos.
Chegamos ao ponto em que devemos pôr a
literatura contemporânea defronte ao espelho. Enxerguemo-la com seus
estratagemas na produção e difusão. É um output que, com o advento da
pandemia do Coronavírus, cingiu-se da nova roupa da internet. Eu sou um entre
dezenas de entusiastas da relação entre mídias sociais e beletrismo. A mídia
social, inclusive, originou políticas públicas dirigidas a canais como Youtube,
Facebook, Instagram, Linkedin, etc. Cito trabalhos de sucesso: as transmissões
da Biblioteca Orlando Lima Lobo (Marabá-PA), o projeto Entre Letras da
UFRA-Tomé Açu, o lançamento virtual da Feira Pan-Amazônica do Livro em 2020,
entre outros. Sem falar nos sites e blogs, como o Blog do Poemeiro do Miri
(gerido pelo confrade Israel Araújo), o blog Garota Pai D`égua, o Portal
Uruá-Tapera (administrado pela querida Franssinete Florezano). Falta espaço
textual, sobram exemplos. Fico por aqui.
As novas tecnologias arrastaram a literatura para o uso de uma nova
roupa, que está permitindo acesso à leitura por um público engajado nas redes
sociais; pequeno ainda, mas importante como vetor de uma (quimérica) revolução
literária nesse país. Além do texto publicado na íntegra, há os projetos
relacionados com o livro: as lives, os booktubers, o bookgrammers,
os booktokers, os blogueiros, as feiras de livro virtuais.
Assim como toda roupa que chega ao mercado
haverá e há reacionários/nostálgicos de plantão, com diversos argumentos na
ponta da língua, para depreciar e alijar as inovações. Penso que, para além da
crítica movida por gosto individual, necessitamos compreender o processo de
resistência da literatura. Ela muda porque mudamos. Já imaginou se a literatura
permanecesse com a roupa do período medieval? Com o rebuscamento de Pero Vaz de
Caminha? Não dá, né! Deixemos essa Rainha má se vestir como quiser. Apenas
estejamos atentos para as mensagens que sua indumentária propaga; pode nos
dizer muito sobre nós, sobre a fruição da modernidade, sobre o humano na corte
da vida, sobre a mobilidade que nos move; ela, a Rainha má, é um espelho up
date.
Ah, a danada acabou de sussurrar cá, nos
meus ouvidos, que originalmente esta crônica foi publicada em um blog; mesmo
que um dia seja transposta para o formato livro, vários leitores, incluindo
você, toparam com ela pela net.
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* Franciorlys ViannZa (ACL, Falpa). Professor de
Literatura brasileira. Oficial Ministerial do MPPA. Mestrando em Estudos
Antrópicos da Amazônia (PPGEAA). Academia Castanhalense de Letras (ACL),
Federação das Academias de Letras do Pará (FALPA). Colunista deste Blog.