terça-feira, 19 de outubro de 2021

Crônica de outubro: "A nova roupa da rainha", de Franciorlys ViannZa

Franciorlys ViannZa (Professor e Escritor)

Já li em entrevistas de estilistas conceituados que a roupa não é uma mera peça para cobrir nudezas, é questão de identidade, de mensagem, de força e civilidade. A título de exemplificação: se você almeja ser o centro das atenções, opte por um vestuário colorido, com cortes arrojados, alíneos, até futuristas; se você almeja passar despercebido, use cores foscas, um preto básico, um prêt-à-porter; alta-costura para quê, né?! Na dúvida, faça como eu: prefira tecidos de linho; dão um ar elegante, mas não têm frescura: jogou sobre o corpo, está pronto para o high society. Nem exigem ferro de passar, o aspecto amarrotado casa perfeitamente com o linho. ‘Que diacho deu em você, escritor? Andou assistindo muito ao Diabo Veste Prada?’. Não, leitor. Destrincharei o título desta crônica já, já. Fiz este desfile na passarela com fins de ilustrar a seguinte discussão: a roupa que você está usando no ensejo desta leitura diz sobre a sua forma de apresentação mais do que você imagina. A apresentação da literatura resguarda algumas semelhanças.

Muito se discute nos meios acadêmicos acerca do movimento literário (ou estética, ou escola) do Boom Latino Americano, ocorrido entre as décadas de 60 e 70, e que modificou a ótica do mundo a respeito da literatura produzida nestes rincões da América. Até o Boom ser deflagrado, o resto do planeta – e por resto, entenda-se o Velho Mundo – dava pouca atenção aos nossos escritores. Quiçá, carecêssemos de uma proposta ficcional que representasse nossa identidade de povo explorado, subdesenvolvido, espezinhado por políticos corruptos, terra frutífera para messias e outras facetas ditatoriais. Um território que remete à Macondo – o famoso vilarejo dos Buendía; a transfiguração do continente americano em alegoria, pelo olhar de Gabriel García Márquez. Segundo doutos intérpretes, Macondo é uma analogia da solidão da América, isolada, envolta em misticismo, propensa ao arroubo de historietas contadas por espertalhões. 

Tudo o que mencionei é muito bonito, poético e romântico, concorda? Larguemos mãos desse olhar unilateral, para compreendermos: o Boom obteve um elevado sucesso editorial com o aporte das editoras europeias, que, após o estrondoso êxito comercial de Cem anos de Solidão, reforçaram o caça-níquel em nosso rumo. Opa! Literatura na América latina vende bem – vende, assim como nosso pau-brasil e nosso minério. Égua desse povo, sugam tudo de nós, da mão de obra barata ao guano! A meu ver, e de Júlio Cortázar, o imperialismo foi tão cruel com nossa gente e literatura que até o maior despertar literário da América recebeu cognome em língua inglesa. Acaso? Não. É uma marca da presença dessas editoras. Podemos questionar o lado positivo delas, mas aí, leitor, teríamos que questionar o lado positivo das facas, pentes e espelhos oferecidos aos povos originários; o que foi introduzido na cultura nativa compensou o extermínio posterior? Depois que as editoras esvaziaram as jazidas do Boom, seus editores regressaram às caravelas e ganharam o alto mar, para bem longe da nossa literatura. Atualmente, para um latino-americano publicar em solo europeu precisa vender o pai, a mãe e um rim.

A forma como o mercado editorial europeu “apresentou” o Boom Latino Americano foi decisiva para o alcance mundial do Realismo Maravilhoso. Vamos fazer o seguinte, troquemos o verbo apresentar pelo substantivo roupa. A roupa internacional que as editoras europeias entrajaram na literatura latina abriu espaços para divulgarmos história, cultura, denúncias e reivindicações sociais. A partir do Boom, a produção intelectual deste cadinho do Novo Mundo foi exibida – e negociada – com ares doutos. Entramos no radar eurocêntrico, mesmo que por uma efeméride. Depois de se fartar do banquete do empregador, o serviçal pegou os pratos e talheres e foi para a pia; alguns, agradecidos pela vianda, obsequiada por um facho de interesse. É isto que fomos depois do Boom, e somos, para eles, os donos do poder: escritores de pia. A mesa de jantar continua reservada aos convidados, a rigor, de pele branca e burgueses.

A literatura é uma ninfa que, loungue durée, muda seu closet, para acompanhar o espírito do tempo. E tem resistido, com estratégias, trocas e adaptações. Quem decretou a morte do romance, morreu primeiro. O romance migrou para uma estrutura com parvas menores, concisas, com leitura mais ágil, abraçou a versão ebook, dialoga com outras tecnologias, virou, em casos, áudio-romance. Conheço uns acadêmicos que torcem o nariz para os formatos atuais de apresentação da literatura – a saber, por canais como Facebook, Wattpad, blogs, sites, Instagram. Para eles, só é escritor o sujeito que tem ISBN. O próprio sistema de catalogação das universidades tem dificuldade para registro de obras artesanais, como o livreto de Cordel. A Câmara Brasileira do Livro é deus na terra. Por sorte, a literatura sempre se mantém uma Rainha má, transgressora, avulsa aos quadrantes dos quadrados. Encontra seus caminhos diante de bloqueios na estrada, seja por conservadores literários, seja por tanques e soldados. O caso do Boom é emblemático: uma literatura amalgâmica entre insólito e real, para falar sobre a opressão de ditaduras militares, em tempos de caça às bruxas, por governos ilegítimos.

Chegamos ao ponto em que devemos pôr a literatura contemporânea defronte ao espelho. Enxerguemo-la com seus estratagemas na produção e difusão. É um output que, com o advento da pandemia do Coronavírus, cingiu-se da nova roupa da internet. Eu sou um entre dezenas de entusiastas da relação entre mídias sociais e beletrismo. A mídia social, inclusive, originou políticas públicas dirigidas a canais como Youtube, Facebook, Instagram, Linkedin, etc. Cito trabalhos de sucesso: as transmissões da Biblioteca Orlando Lima Lobo (Marabá-PA), o projeto Entre Letras da UFRA-Tomé Açu, o lançamento virtual da Feira Pan-Amazônica do Livro em 2020, entre outros. Sem falar nos sites e blogs, como o Blog do Poemeiro do Miri (gerido pelo confrade Israel Araújo), o blog Garota Pai D`égua, o Portal Uruá-Tapera (administrado pela querida Franssinete Florezano). Falta espaço textual, sobram exemplos. Fico por aqui.

  As novas tecnologias arrastaram a literatura para o uso de uma nova roupa, que está permitindo acesso à leitura por um público engajado nas redes sociais; pequeno ainda, mas importante como vetor de uma (quimérica) revolução literária nesse país. Além do texto publicado na íntegra, há os projetos relacionados com o livro: as lives, os booktubers, o bookgrammers, os booktokers, os blogueiros, as feiras de livro virtuais.

Assim como toda roupa que chega ao mercado haverá e há reacionários/nostálgicos de plantão, com diversos argumentos na ponta da língua, para depreciar e alijar as inovações. Penso que, para além da crítica movida por gosto individual, necessitamos compreender o processo de resistência da literatura. Ela muda porque mudamos. Já imaginou se a literatura permanecesse com a roupa do período medieval? Com o rebuscamento de Pero Vaz de Caminha? Não dá, né! Deixemos essa Rainha má se vestir como quiser. Apenas estejamos atentos para as mensagens que sua indumentária propaga; pode nos dizer muito sobre nós, sobre a fruição da modernidade, sobre o humano na corte da vida, sobre a mobilidade que nos move; ela, a Rainha má, é um espelho up date.    

Ah, a danada acabou de sussurrar cá, nos meus ouvidos, que originalmente esta crônica foi publicada em um blog; mesmo que um dia seja transposta para o formato livro, vários leitores, incluindo você, toparam com ela pela net.


_____________

Franciorlys ViannZa (ACL, Falpa). Professor de Literatura brasileira. Oficial Ministerial do MPPA. Mestrando em Estudos Antrópicos da Amazônia (PPGEAA). Academia Castanhalense de Letras (ACL), Federação das Academias de Letras do Pará (FALPA). Colunista deste Blog.

3 comentários:

  1. Sempre com a mesma densidade e elegância. Show!

    ResponderExcluir
  2. É isso, as roupas precisam ser mudadas e modernizadas, para que não percamos o bonde da história. O importante é a qualidade da obra e que ela possa ser acessível ao maior número de leitores possível.

    ResponderExcluir