Fernando Farias
O homem acordou pressentindo que aquele seria um dia diferente.
Esquivando-se disso, deu confiança pra rotina que logo o cutucou. Sintonizou o
seletor do radiozinho e procurou a voz de Álvaro Pinto no “Arquivo Musical”.
Projetou a vista e pensamentos no passado. Logo, avistou a amada que um dia
dançara coladinha com ele, aquela música executada, no Palácio dos Bares. Foi
lá que conhecera o único amor de sua vida.
Abriu a janela, cumprimentou seu Raimundo carroceiro
que cedo passava no árduo batente. Não importava o dia. "De descanso
somente o criador", lembrava sempre ao amigo. Conferiu no bolso da camisa
esfarrapada alguns cigarros amassados. Antes, um cafezinho. Catou na gaveta um
fósforo. Riscou. Com o clarão, sentiu iluminar também, em incandescência fraca,
seus parcos dias naquela casa.
Respirou fundo, como quem pensa na vida. Fugiu do
presságio, tomou café, fixou a calça na cintura com punho de rede e partiu rumo
ao Odivelense. Antes um “bom dia chefe!”, ao amigo radialista. Destino
calculado, decisão tomada. As pernas pesavam 85 anos de quilômetros andados.
Partiu. No trajeto rumo ao recinto boêmio, cumprimentou também Pinchaca, Dona
Dalila, a mais exímia costureira do bairro, e Dona Jurema, que acabara de
acordar a pequena Neta. Já próximo ao local costumeiro, o senhor de dias
avançados, tomou “bença” da benzedeira Maria Pezinho. Tirou do bolso o dinheiro
contado e pagou o cuscuz comprado domingo passado com Dona Isabel. O amigo Foró
passara por ele contente da vida com seus indispensáveis dois litros de açaí.
Chegou ao boteco. Seu João, dono do recinto,
instruía o auxiliar Ibinha a comprar laranja na feira da vinte e cinco. O velho
Neemias sentou, pediu uma lapada de Tatuzinho. Virou de uma só vez. Chupou um
quarto de limão e fez a careta habitual. Segui-se a essa dose, mais uma, duas,
três, quatro...
Meio dia. Recolheu o chapéu na cabeça, firmou a
havaiana nos pés e levantou-se ajustando o cinto de punho de rede. Bambeando,
chegou a velha barraca construída com o parco dinheiro da aposentadoria.
Deitou-se. Aquela seria a última vez que presenciaríamos essa peculiar rotina.
No outro dia, incomodados com a ausência do velho
solitário, tentamos abrir a duras penas a casa daquele senhor ausente na vida
de todos nós. Ao conseguirmos, encontramos nosso camarada Neemias, naquela
hora, anêmico. O sangue parecia esvaído de sua veias. Nas mãos, o troféu
símbolo de derrota. Dentro dele, uma dose cristalina, convidativa, mortal...
Fernando Farias
São Paulo, 19 de agosto de 2014
P.S.: Fernando dos Santos Farias é Graduado em pedagogia (UEPA), Especialista Em estudos Linguísticos e Análise Literária (UEPA), Mestre em Educação (UEPA-PUC/RJ), cursa Doutorado em Educação (USP) e tem duradoura experiência em pesquisas na área de Educação. É Professor Assistente na Universidade Federal do Pará, campus de Altamira.
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