quarta-feira, 20 de agosto de 2014

SEU NEEMIAS [UM CONTO "REALIDADE" DE FERNANDO FARIAS]


Fernando Farias

O homem acordou pressentindo que aquele seria um dia diferente. 

Esquivando-se disso, deu confiança pra rotina que logo o cutucou. Sintonizou o seletor do radiozinho e procurou a voz de Álvaro Pinto no “Arquivo Musical”. Projetou a vista e pensamentos no passado. Logo, avistou a amada que um dia dançara coladinha com ele, aquela música executada, no Palácio dos Bares. Foi lá que conhecera o único amor de sua vida.

Abriu a janela, cumprimentou seu Raimundo carroceiro que cedo passava no árduo batente. Não importava o dia. "De descanso somente o criador", lembrava sempre ao amigo. Conferiu no bolso da camisa esfarrapada alguns cigarros amassados. Antes, um cafezinho. Catou na gaveta um fósforo. Riscou. Com o clarão, sentiu iluminar também, em incandescência fraca, seus parcos dias naquela casa.



Respirou fundo, como quem pensa na vida. Fugiu do presságio, tomou café, fixou a calça na cintura com punho de rede e partiu rumo ao Odivelense. Antes um “bom dia chefe!”, ao amigo radialista. Destino calculado, decisão tomada. As pernas pesavam 85 anos de quilômetros andados. Partiu. No trajeto rumo ao recinto boêmio, cumprimentou também Pinchaca, Dona Dalila, a mais exímia costureira do bairro, e Dona Jurema, que acabara de acordar a pequena Neta. Já próximo ao local costumeiro, o senhor de dias avançados, tomou “bença” da benzedeira Maria Pezinho. Tirou do bolso o dinheiro contado e pagou o cuscuz comprado domingo passado com Dona Isabel. O amigo Foró passara por ele contente da vida com seus indispensáveis dois litros de açaí. 


Chegou ao boteco. Seu João, dono do recinto, instruía o auxiliar Ibinha a comprar laranja na feira da vinte e cinco. O velho Neemias sentou, pediu uma lapada de Tatuzinho. Virou de uma só vez. Chupou um quarto de limão e fez a careta habitual. Segui-se a essa dose, mais uma, duas, três, quatro... 


Meio dia. Recolheu o chapéu na cabeça, firmou a havaiana nos pés e levantou-se ajustando o cinto de punho de rede. Bambeando, chegou a velha barraca construída com o parco dinheiro da aposentadoria. Deitou-se. Aquela seria a última vez que presenciaríamos essa peculiar rotina. 


No outro dia, incomodados com a ausência do velho solitário, tentamos abrir a duras penas a casa daquele senhor ausente na vida de todos nós. Ao conseguirmos, encontramos nosso camarada Neemias, naquela hora, anêmico. O sangue parecia esvaído de sua veias. Nas mãos, o troféu símbolo de derrota. Dentro dele, uma dose cristalina, convidativa, mortal...

Fernando Farias

São Paulo, 19 de agosto de 2014






P.S.: Fernando dos Santos Farias é Graduado em pedagogia (UEPA), Especialista Em estudos Linguísticos e Análise Literária (UEPA), Mestre em Educação (UEPA-PUC/RJ), cursa Doutorado em Educação (USP) e tem duradoura experiência em pesquisas na área de Educação. É Professor Assistente na Universidade Federal do Pará, campus de Altamira.




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